Os 20 anos de “Sobrevivendo no Inferno” expõem uma faceta do Brasil que pouco mudou discos
Postado em: 20 de dezembro de 2017
Definitivamente irei fazer hoje uma exceção a esse blog e a contragosto da dona dele (ouviu, Stéphanie?). Não precisam entrar em pânico, pois logo mais minha análise sobre Liga da Justiça estará no blog. A grande questão é que não poderia deixar de comentar nesta data o aniversário de 20 anos de um dos mais simbólicos álbuns da música brasileira dos anos 90 e, porquê não, também da história musical deste país. Sem dúvida, as duas décadas de Sobrevivendo no Inferno não poderiam passar batidas.
A história do quarteto paulistano se inicia no mesmo período em que o hip-hop começou a florescer no país. Em 1988, Mano Brown e Ice Blue se juntaram aos rapazes da zona norte da capital paulista Edi Rock e KL Jay – após vê-los em uma apresentação e ficarem impressionados com o entrosamento da dupla – e dois anos depois debutaram com um álbum completo, Holocausto Urbano. Após uma boa recepção local de seu primeiro trabalho, três anos depois o quarteto lança Raio-X do Brasil que, alavancado pelas músicas “Fim de Semana no Parque” e “Homem na Estrada”, trouxe o nome do grupo e a forte mensagem de denúncia sobre o que acontecia nas favelas paulistanas (e também do Brasil, por consequência). Porém, ainda era pouco.
Após o lançamento do EP Escolha Seu Caminho, o grupo se une novamente e lança o álbum aqui discutido. Nunca mais o gênero foi a mesma coisa no país após Sobrevivendo no Inferno. Após o lançamento do disco, o grupo atingiu o ápice a ponto de vender mais de 1 milhão de cópias de forma independente. Mais ainda, o grupo enfim penetrou nas periferias do país inteiro e também a contragosto dos integrantes (algo que foi explicitado no álbum seguinte, Nada Como Um Dia Após o Outro Dia) passou a ser ouvido por pessoas da elite. Quem nunca ouviu algum playboy cantando por aí versos de músicas clássicas do quarteto? Tudo começou aqui.
Sem nenhum aparato de mídia para divulgar o trabalho, o que fica perceptível é que ele se vendeu apenas pela força de suas canções. Após a homenagem a Jorge Ben Jor numa regravação de “Jorge da Capadócia”, uma pequena vinheta introduz “Capítulo 4, Versículo 3” (uma alusão a ser o quarto álbum e a terceira música deste) que versa assuntos que já foram expostos nos álbuns anteriores mas que aqui ganham uma força maior: uso e tráfico de drogas, pobreza, racismo e violência policial. O grande diferencial para o que foi mostrado anteriormente é que a partir daqui o Racionais passou a discursar de forma mais empática, procurando mostrar os motivos que levam a pessoa a chegar num ponto tão extremo (como entrar na vida do crime) e paralelamente mostrar que há outras saídas para não atingir o fundo do poço por mais difícil que seja evitá-lo.
Se em “Tô Ouvindo Alguém Me Chamar” o rapper e líder do grupo Mano Brown versa em primeira pessoa sobre um cara qualquer que entrou na vida do crime, foi traído pelo parceiro (o Guina, aquele que gerou até um impostor que você provavelmente conhece) e agora, no leito de morte, se arrepende do que fez e deseja seguir a vida de outra forma, Edi Rock na sua “Rapaz Comum” relata na posição de observador o nascimento, vida e morte de um rapaz que seguiu a mesma vida do personagem da música anterior e também teve um fim trágico. A força das canções e a criatividade poética das letras, sob a batuta de bases tensas (vide o som do eletrocardiograma da primeira e a referência a “Black Steel in the Hour of Chaos” do Public Enemy na segunda) criam uma atmosfera que choca e deixa o ouvinte em posição de reflexão.
Na famosa – e merecidamente alçada a clássico do gênero aqui no Brasil – “Diário de Um Detento”, realizada em parceria com o ex-detento Jocenir (que escrevia poesias na cadeia), Mano Brown não apenas versa sobre o massacre do Carandiru como expõe de forma clara o que se vive dentro de uma prisão e, principalmente, como as pessoas enxergam quem lá está. Da mesma maneira, porém sob a perspectiva do gueto, “Periferia é Periferia” expõe que independente do lugar que se vive a vida na favela é a mesma em qualquer lugar e, consequentemente, quem é de fora enxerga as pessoas que lá moram da mesma maneira: sempre negativa.
Um contraponto interessante a tônica pesada e triste do álbum fica na engraçada “Em Qual Mentira Vou Acreditar?”, esta com Edi Rock e Ice Blue, em que os rappers discursam sobre uma noite de diversão em que tudo acaba errado e que, mesmo assim, não deixa de versas sobre temas como violência policial e racismo. Porém, todo o clima lúgubre que permeia o trabalho volta na fantástica “Mágico de Oz”, em que o citado Edi Rock versa sobre como o descaso às crianças da periferia é algo determinante para que entrem na vida do crime e se viciem em drogas desde jovens, uma vez que não há apoio e bons exemplos à tona quando se encontram “largadas” por aí. Um soco no estômago legítimo, principalmente dos falsos moralistas que vira e mexem vem discusar de forma reacionária e burra sobre “proteger nossas crianças”. A quem e ao que eles querem proteger, afinal?
Além de um agradecimento (como de praxe na maioria dos álbuns do grupo), Mano Brown faz uma narrativa sobre a própria vida na sensacional “Fórmula Mágica da Paz”, que soa também como uma reflexão sobre tudo o que foi dito até aqui. Não havia melhor maneira de fechar um trabalho tão sólido. Vale destacar, além das letras impecáveis, as bases construídas por KL Jay. Além de saber programar muito bem a bateria, o DJ escolheu a dedo os ótimos samples que apareceram no álbum. E as músicas, mesmo que longas, não soam enjoativas e isso dá ainda mais credibilidade ao trabalho de todo o conjunto.
O rap nacional após esse disco ganhou outra face, com muita gente passando a apostar num modelo de lançamento independente e obtendo sucesso (vide o Emicida, que inclusive evoluiu essa proposta). A crítica passou a levar a sério o gênero, percebendo que dentro de toda a brutalidade discorrida nas letras havia um verniz poético certeiro de grande valia. E o Racionais, principalmente, passou a ser motivo de estudo, clamor e apreciação por uma geração de jovens que buscava respostas sobre o porquê de tanto sofrimento no cotidiano e também por aqueles que nada tem a ver com isso.
Se você tem preconceito com o gênero, deixe-o de lado e aprecie o conteúdo deste disco. Garanto que se você tiver uns neurônios sobrando e saber usá-los bem tirará boas lições e reflexões de toda a mensagem passada por Mano Brown e seus asseclas.